segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Imagina o que seria...



Soube, desde sempre, que a sociedade pode ser cruel. Que tudo está organizado, na sociedade, de forma que a vida de uns seja como meras peças de jogo nas mãos de outros. Às vezes, dou comigo a tentar destrinçar essa trama e a encaixar as peças, a estudar as tácticas - qual treinador de futebol que observa os jogos dos adversários. E sem querer vou deduzindo, sem grande esforço vou entendendo e contorcendo-me no meu âmago.
 Somos gado, rebanhos de pastores que negoceiam entre eles. Não é muito difícil de chegar lá e descobrir quem é que nos dá de comer… só me incomoda a estupidez dos pastores… eu sou uma espécie de ovelha Choné.
Bem, mas ao que queria chegar? Havia algo que eu não entendia, mas cheguei lá. Nunca repararam que, salvo mesmo raras exceções, neste emaranhado de crueldade há sempre solidariedade para os mais desfavorecidos? Nunca pensaram porque é que se alimentam, ainda que de forma pouco dignificante as classes miseráveis? Nunca refletiram sobre o móbil que leva o poder a alimentar a dependência e como está tudo organizado a prevalecer na dependência? Então, vem-me á ideia um fragmento de um slogan publicitário e canto em voz alta para mim mesma: “imagina o que era não dar uma bolacha aos pobrezinhos”.

Se realmente se ajudassem as comunidades a organizarem-se para fazer frente aos problemas elas iam adquirir tamanha autonomia, tamanha capacidade… e as competências que se adquirem por necessidade prevalecem ao invés daquilo que é imposto… então “imagina o que era se dessem uma bolacha ao povo!”


Parece-me que nasci num momento de transe de algum desses pastores que acreditou que se o gado fosse ao pasto sozinho e voltasse ao estábulo era mais rentável a produção e menos dispendiosa. Por isso desde 79 até há relativamente meia dúzia de anos, fui adquirindo a consciência de igualdade, de autonomia, participação, cooperação. Fui alimentando a ideia de que se “eu quisesse podia”, aliás a culpa de não poder não era bem do mundo era mais de casa, mas isso “são outros Carnavais”. Foi isso que aprendi, foi isso que fui ensinando ou demonstrando e é nisso que acredito.
Mas, subitamente o pastor que amava o seu rebanho sentiu-se, inseguro com a liberdade que deu às suas vacas, elas podiam fugir a qualquer momento, elas podiam ir embora, podiam deixar de lhe pertencer. O que lhe garantia o seu amor, a sua admiração? No fundo ele nunca tinha sido pastor por escolha das vacas, fora-o sempre por uma certa imposição – as vacas não tinham outro remédio se não serem vacas e obedecerem, demonstrarem admiração e afeição ao seu pastor. Sentiu-se ferido e traído, pelo seu próprio medo de ser traído – pois as vacas nunca o chegaram a trair realmente… Então, acordou do devaneio, foi interiorizando que as vacas podiam fugir-lhe, que ele podia não estar à altura delas, que havia biliões de outras coisas que elas podiam admirar, nomeadamente a elas mesmas. As vacas podiam ser independentes, criar a sua própria cidade de vacas sem pastores e sem banca.   
Não lhes deu se quer oportunidade de o questionarem a ele e à sua performance como pastor de vacas e antes que elas se atrevessem…
Havia que dominar as vacas, infringir-lhes maus tratos para elas entenderem à força que não são mais que simples animais domésticos e que pertencem a um pastor. Não se lhes podia dar alternativas à alimentação facultada pelo pastor, ao estábulo subsidiado pelo pastor… tudo, tudo, tudinho dependia da ordem suprema do pastor! Era preciso incutir nas vacas o medo: o medo é sempre uma arma preciosa, ecológica e silenciosa, mas infalível. As vacas tinham que acreditar que para lá das sebes havia perigos incalculáveis e acima de tudo havia que destruir a crença das vacas nelas mesmas. Como? Simples, repetindo-lhes incessantemente que elas eram: vacas!
O pastor estava tão apavorado em perder as suas vacas que inclusive passou a ensinar-lhes um hino, onde as vacas repetiam em postura firme: “tenho orgulho em ser uma vaca…” etc. etc. mais que orgulho era uma resignação, uma constatação, uma subordinação aceite como a naturalidade com que se aceita um facto irrefutável de que a água é água.

Tudo isto me faz pensar: Imagina o que seria se déssemos de frosques ao pastor!
Lúcia Pereira da Cunha

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