sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O que me abruma e me abisma


Ah o que me abisma e me abruma
É pensar-me tocada pelo teu corpo
E por todo o vazio do teu pensamento
Esse acéfalo, ausente raciocínio proveniente
De qualquer neurónio morto
abentesma jacente
que em vez de face é só escroto


ah mas o que me abisma e me abruma
são os salamaleques, os berloques e os berliques
que tecem e teces… imenso oco intenso
um cheio de nada espremida espuma
folha de sumaúma

o que me abruma, abantesma
e ver-me a mim mesma
envencilhada num parecer
que mais parece um empecilho
que não deixa nascer nem ser isto nem aquilo



Lúcia Cunha

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Não quero chamar anjos nem musas


Não quero chamar anjos nem musas
Nem sofrer de males eternamente
Há de me estar algures a vontade de sempre
Já perdemos muito tempo
Ou só o tenhamos vivido.
Sem que cada momento
Seja um demónio vencido.

Foi feito o tempo para passar
E a ponte para continuar.
Então passa, continua… ao ritmo que for para dar,
Sem atabalhoar, espera se for preciso esperar.

Putrefação negra


A vontade maior era dizer: basta!
Vomitar dois pedaços de fel,
Fazer uma enorme evacuação
Da alma, gerar tamanho afito…
Desprender todos os esfíncteres
Que constringem as ideias…
Mas em suma o tempo seria um desperdício
Se em vez de genial se observasse o excrementício

A vontade era entregar de vez o corpo aos prazeres
Da doce morte, deixar que as larvas comessem as entranhas.
Dissolver-me pelos sucos dos saprófitos
Até que todas as partes não fossem ao húmus estranhas.
Que se prolonguem sobre o corpo, o meu corpo, Physarum polycephalum
 Que invada as faces, cubra olhos, lábios
Se prolongue nos dedos como lodo imundo.
 Designo sublime
De um recomeço eminente
Morrer para ser semente.

Lúcia Cunha