quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

fiapos brancos em queda lenta

havia fiapos brancos em queda lenta
parecia tudo calmo, branco e em camara lenta

mas algo em mim - uma dor que me adentra
me deixa lacerada
um quase fim de nada

são as marcas da batalha
sob a armadura soldada
da soldado , as marcas da escrava
e das correntes, na escrava
são as dores do parto inconsumado
da parturiente de barriga rompida
são as dores de um ato falhado
são as dores da luta da vida
de uma alma cansada no final de uma etapa da corrida

vi-lhe isso na cara
e do lado de quem não sente
vi-lhe isso na mente
e já não sabia se era eu ou outro o doente


L.C.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Galochas vermelhas


Saltas nos charcos com as tuas galochas encarnadas
Que julgas que te protegem do mundo

E tu que andas todos os dias à procura de te fazeres sentir
Tens uma necessidade intensa de te fazeres ser
És-me indiferente
Ainda que grites e aclames a toda a gente
És-me apenas indiferente
Nada do que dizes me afeta me comove me atingem
Nada do que me fazes me demove, me dana, me tinge.

E eu sei que não me protegem as botas encarnadas
Mas ando tranquila sem muitas palavras.

Havia em ti esse cabrejar
Drible jugoso e jogo, um ser-se a brincar
As galochas vermelhas concentravam
A leveza de se fazer leve a vida e breve e belo o sonhar

Não sei nada sobre palavras
Brincava com as minhas galochas encarnadas
E as minhas tranças apertadas
Não sei nada sobre gentes
Só me fui fazendo árvore daquelas que conseguem voar
Daquelas que rebentam todos anos por mais que as venham a talhar

Lúcia


sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Procura dentro de ti



Procura dentro de ti,
De certo irás achar entre a amargura da expectativa
De um dia ter melhor sonho e amor nesta vida,
Irás ainda, encontrar resquícios do que te faz levantar.

Procura dentro de ti,
Certamente ainda lá deve estar, nem que seja a lembrança,
Recorda-te do pacto que fizeste ainda criança
Que seja esse compromisso que te faça elevar.


Procura dentro de ti
O motivo de tenra aliança, é dentro de ti que deve estar
Essa força e esperança que te vão relançar.
Irás perceber que no motivo de morrer está pelo que nasci.

Procura dentro por ti.



A Lúcia

Secaram as palavras do meu jardim



Fiz quase tudo sem vontade de ter feito,
Rebentou dentro de mim um choro que me apertava o peito,
Secaram as palavras do meu jardim.
O meu grito, em silêncio,
Ecoa para dentro.
Poderia eternizar o momento,

Mas cada momento me inferniza a mim
E me enfermiça, dia não dia sim.

Lamento o tempo que passou.
E aí, sim, podia ter sido feliz,
Mais que neste tempo que não sou
E também neste tempo perco tempo com o que não fiz.


L.C.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Os Tigres e os homens



Um dia, acabaram-se as metáforas e só me restava manda-los para a puta que os pariu.
Um dia, já tinham sido tantas as agressões à razão e ao respeito pela ordem natural das coisas e à própria dignidade da espécie, que só me restava mandá-los para a puta que os pariu.
Então estanquei-me. Sentei-me e observei o lodo: imundo e putrefacto. Deixei de vomitar, perdi o olfato.
Vai ter que ficar para outra vez, talvez.

O tigre recolheu sozinho à guarida. Esperou pelas forças para voltar em busca de água e comida.
Não te espantes que algum caçador sem honra e sem escrúpulos abata assim o animal.
Onde vês, tu, proeza em tal façanha? Matar o último animal magnifico assim nascido com dons de beleza e força apenas por obra da natureza.
O animal deitou-se no fresco da gruta, não por medo, mas por cansaço, e agora suspira.
Nunca ninguém lhe veio amenizar as intempéries da vida sem o querer por em cativeiro. Nunca ninguém lhe veio sarar as doenças sem esperar que o animal amansasse a sua natureza. Alguém entenderá que o tigre é belo assim vivo, livre no seu instinto e na sua natureza?
Grande serias se um dia comunicasses com ele. Mas, tu, nunca serias capaz disso. Haverias querer ensinar signos e sons abstratos ao tigre, coisas ridículas dos homens, ao que chamam linguagem e ainda não satisfeito com a palhaçada, haverias querer que ele ouvisse e lesse as tantas outras coisas sábias, de homens, que não tem utilidade nenhuma, nem servem aos tigres, nem aos homens e não passam apenas de caminhos em círculos, em torno de egos sobre si próprios. Havias querer que o tigre pronunciasse o teu nome, as tuas palavras e, imagina, que o tigre te admirasse! A ti. Alguma vez haveria o Sol de adorar os homens?
Experimenta ser o tigre, e as aves, e a chuva, e simplesmente uma pedra na humildade de pedra e na persistência de ser pedra, apenas para ser, imóvel, persistente no propósito de pedra, haverás de ser tudo o que é preciso que sejas se cumprires com devoção e serenidade o teu desígnio de ser. Alguma vez viste a pedra acenar espampanante a dizer “eu sou pedra, eu sou pedra!” E às vezes há pedras que brilham, e outras aparentemente baças e escuras que são adoradas e outras são apenas pedradas... e têm tantas e imensas funções.
Eu, não gosto de gente ruidosa, reservo-me o direito de ser silêncio, de ser pedra, ser tigre de ser o que eu quiser.



 
Não há tigres
O último tigre barão jovem e saudável
Foi abatido ontem
O espécime pesava e media

Consta que o caçador era um homenzinho rechonchudo careca
Sabemos que era do sexo masculino porque apresentava um pequeno pénis enrugado
Por de baixo da barriga balofa
Sabe-se de fonte segura que o homenzinho nunca foi amado nem nunca conheceu a mãe
As autoridades tentam descobrir o motivo do crime
Mas está confirmado que o homenzinho atirou e abateu o tigre
Antes de, ele próprio, morrer afogado em vómito e excremento


Lembramos agora a beleza do tigre
Façamos agora um momento de silêncio.

E no silêncio chorei a morte do tigre
Mas fui feliz por sabê-lo livre dos homens
E na memória dos Deuses
Tocamos as almas com os olhares
Eu vi-o.
E ele... ele seguiu o seu caminho e eu aprendi a seguir o meu.
Às vezes sou tigre
às vezes vento
às vezes água
O que importa é que nunca se morre quando se é de verdade.




Vejo de longe os animais
Para não lhe sentir o sofrimento.
A terra geme com febre,

Em breve entra em convulsão.

Não posso fazer nada,
A inteligência dita a retirada.
Tentar agora era ser levada.

A quantas manhãs importas, e a quantas terras e madrugadas?

Se lamento não ter salvo o mundo?
Não era obra de um só Homem,
Eram precisos mais nessa batalha.

Não estaria certa, se não fui escutada.
Ou a orelha mal preparada!
E, em vez de som, libertei apenas a trovoada...

Porque ardem em chama os rios?
E dizem eles que é coisa assim,
Se não entendo é mal que vem de mim.
Que importa se apenas for um a falar?
Ainda que ele tenha razão,
Só se muda o rumo se for uma multidão.