terça-feira, 16 de agosto de 2016

A propósito de “doutor”…



Há dias, que é impossível fingir-me de morta.
Sabem como é? Sabem quando vemos a injustiça, a estupidez, as aberrações… mas vamos aguentando e fazendo de conta que não é connosco, ou que podemos realmente lutar por “um mundo melhor” mas pacificamente, com a nossa tolerância, com a nossa consistência de valores, com a nossa coerência… mas vamos fingindo de mortos, até por uma questão de sobrevivência como faz o opossum, a cobra-de-água e outros bichos.
Mas, chega um dia e é impossível aguentar mais! Porque afinal aquilo é um insulto à inteligência! É um insulto à dignidade! Sim, acima de tudo à dignidade. Afinal, somos livres ou somos escravos? Às vezes oiço relatos que me parecem surreais, e depois chego à conclusão que realmente estamos sujeitos a essa condição, uns de forma mais explícita que outros, uns em maior escala que outros, mas todos sob o jugo da escravatura.
Dizia uma pessoa amiga: “Andaram a ver quantas unidades produzíamos em x minutos, fizeram as contas e ao fim do dia teríamos que ter y unidades”. A este ponto da conversa comecei a sentir um leve refluxo e algo se desestabilizou em mim. A minha amiga prosseguiu. “Ao fim de n tempo verificaram que não estavam produzidas as unidades que esperavam e perguntaram o que andei a fazer?”
Alguém, por favor, com discernimento suficiente consegue ver o absurdo da situação? Peço desculpa, mas falta-me a eloquência suficiente para redigir de forma garbosa algo tão grave!
Os sentimentos imiscuem-se com o raciocínio e torna-se difícil escrever de forma objetiva, apontando as premissas corretas, alinhando-as com a dedução lógica e de forma a apresentar a explicação e a argumentação, que neste caso deveria chegar até aos asnos! Mas os asnos nunca vão aprender, na verdade foram escolhidos asnos para dirigir os escravos, porque asno que é asno não questiona, regurgita ordens, ideias, e até os próprios silogismos. Asno que é asno não pensa, é acrítico, reproduz e por isso ocupa um lugar de relevo. Mas, no fundo é apenas mais um escravo com um pouco de mais liberdade. Normalmente, os animais domésticos que já não fogem, são deixados à solta! As bestas novas, com maior vigor têm que ser amarradas, isso no campo faz-se, fazia-se com as cordas, com as peias… uma vez um agricultar peou as cabras, para que não corressem tanto… um dia o rebanho ficou manso e velho e as cabras seguiam o pastor… Não! Não, a história foi diferente, a verdade é que as cabras continuaram a fugir e a dar trabalho ao pastor – é que faz parte da natureza das cabras questionar e escolher os próprios pastos, se o pastor não for suficientemente inteligente para respeitar e amar a natureza das cabras… está tramado! Por isso, um dia o homem vendeu-as e desfez-se do rebanho!  
Se este homem amasse e respeitasse a natureza das cabras fá-las-ia felizes e seria capaz de tirar proveito do seu potencial natural, sem com isso ter que as dominar, amarrar, explorar!
Mas homem queria ficar poderoso e para isso, achava ele que precisa de manter todos sobre sofrimento e assim dominaria. O senhor do mundo!
Quando te peço para me deixares respirar e tu me abafas, tu crês ilusoriamente que és o dono da minha vida e podes decidir matar ou deixar viver. Mas não é assim. Se me amasses terias o dom de me ver viver, admirar-te e… livremente escolher servir-te! Porque até as cabras precisam de pastores! Até os cavalos selvagens se encanto pelos homens grandes! Ah! e quando amamos, somos capazes de coisas extraordinárias por amor!
Imagina, meu grandíssimo asno, eu até acho que até eu faria mais unidades que aquelas que precisas e em menos tempo! Eu, até te daria uma ideia de como deverias dirigir, gerir este nosso reino onde tu mereces ser o rei, o senhor, o líder… porque nos amas, nos cuidas e nos admiras!
No fundo é tão simples… os escravos chicoteados morrem! Ninguém rende igual sempre… nem as máquinas são infalíveis, ao fim de x km é preciso mudar o óleo, os pneus, os filtros de ar… e os carros com o tempo deixam de ser tão rentáveis. Até eu que não sei nada de máquinas nem de manutenção, sei que há desgaste. Mas é melhor não continuar com esta alegoria… não vá o diabo tece-las e o Asno vir com ideias!
Não há nada melhor que ver um espetáculo de feras em que não há “domador”! Eu no circo, gosto dos encantadores de animais, aqueles que tem uma relação de tão grande respeito e amor com o outro ser que até são capazes de comunicar com ele. Sim, é isso, comunicar com um ser diferente, isso sim é um dom!
Eu gostava realmente ser explícita, e apontar friamente o dedo ao problema, localiza-lo temporalmente e espacialmente, chamar os nomes corretos às coisas… Mas, apenas me consegui comunicar em profundidade com as cabras do meu rebanho e isso já foi há algum tempo. Lembro-me de cada uma delas como se de uma amiga se tratasse… é mentira que não tive ou não tenho amigas, mas a verdade salvo raras exceções, essa dúzia de animais constituíram a minha mais forte rede de suporte social, que nada deixa a desejar à atual, verdade seja dita! Para dizer a verdade eu gosto de me rodear por quem tem esta capacidade de escolher os próprios pastos e fazer as próprias conjeturas!
Mas, voltando à vontade que me assola no momento, eu gostava de ser mais explicita, mas a miscelândia de emoções e o próprio refluxo causado pelo relato impedem-me… e no fundo… às vezes também me sinto peada, uma peia que já não é interna, mas externa… invisível, mas presente… é como o arame elétrico (o pastor elétrico) que se coloca nas sebes depois basta colocar um baraço e o gado acredita que se lhe tocar vai receber uma descarga… eu de vez enquanto gosto de o desafiar e lá vou eu levando uns choques aqui e alí. Outras vezes o pastor opta por não me dar importância, mas dá… porque não me deixa ir onde eu quero! Continuo presa entre as sebes.
E o Asno, disse: “Já viu, você é que tirou o curso, mas é a mim que me chamam doutor.”



E era uma vez o Sr Doutor Asno,
Que fazia contas de cabeça
E fazia de contas que tinha essa.

E era uma vez o sr Doutor Asno
Que por ser asno o diabo deu-lhe poder
Sabia bem o Asno que se d’ali fugisse se iria perder

E era uma vez o Sr Dr Asno que para além de burro
Também era escravo de quem lhe dava de comer.

Lúcia Cunha

 

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Entrou aqui um vendaval



Entrou aqui um vendaval
Levantou os cortinados,
Manchou os canapés estofados,
Espalhou a lama nos meus lençóis.

Sai daqui,
Sai daqui criatura necrófaga, que me segues sedenta de sangue
Acaso te importuno eu na tua guarita?
Com que direito tornaste este altar sacro putrefacto?
Isso, enjaula
Enjaula-nos
E somos todos apenas desgraçados
Regozijo dos demais
Que se riem com os nossos ais
Sim, de todos nós, não vês? Ou que crês
Alguém te acode a ti?
Alguém me acode a mim?
Alguém acode a ele?
Pára! Basta!
Deixem-me respirar!
Vou fugir vou voar
E deixo o leão lastimado e a hiena a rondar
Eu sou garça e vou voar
Levo a minha prol
Levo o meu amor o meu farol.
Deixo-vos a chafurdar na vossa dor.
Insultuoso? Achas realmente que é insultuosa a alegoria?
Insultuosa é a hipocrisia!
Insultuoso é não ser capaz de respirar
Insultuoso é não deixar partir não deixar crescer não deixar...
...voar.
Prender por prender
Por ego, ego mesquinho…
Ai que desatino!
Pára de chafurdar e de enlamear com pérfida lama
Ama! Ama! Ama tu!
Ama-te!
Já pensaste em mim? Já pensaste?
Já te puseste no meu lugar
Anda, vem ver,
Vem espreitar vem ler
Vem entender como amo até a ti,
Como me compadeço
Como acho uma lástima
É lastimoso
É horroroso vivermos assim!
Sim, sou arrogante, pedante talvez
 não tenho o direito… até podes ter razão, desta vez!
Mas eu vejo com o coração não passo de uma pobre rapariga tola… não te quero mal.
Não o faças a mim, nem a ti,
Nem a ele.
Sabes… vê como se ri
O burgo ri
O burgo quer circo e feras
E sangue e lodo
Ai como é cruel o povo.
Entende por favor.
Sabes qual é o maior amor?
Aquele que eu preciso ter
E por isso voo para me erguer
Sozinha, agora e outra e outra vez… já reparaste como as asas me devem doer?
Já pensaste no motivo para tudo isto acontecer?
Anda, voa, até tu podes voar
E se calhar a mim vai-me doer…
Mas eu só queria
A sério, honestamente, só queria um pouco de paz, de harmonia,
Acreditas? Só queria
Que inguém vivesse em agonia
Eu sei,
Não dá para compreender
Mas acredita é a melhor maneira de sobreviver
Voa, voa, qualquer um pode aprender!
Já imaginaste que talvez
Não fosse tão forte e ameaçadora a ligação
Se houvesse mais irmandade e menos solidão…
Sei lá…
Pobre de mim, dar-te este beijo de boa noite a ti.
Oxalá tu lesses bem
Oxalá entendesses.
Estou certa que não está a entender
Talvez te possa doer, e até estejas a fazer uma enorme confusão…
Por isso vou contar a história da garça a ti meu verdadeiro amor,
Flor pequenina e bonina
Imaculável, de forma que não entendendo tu possa ela compreender.
Como se fosse uma nana de boa noite.
Em vez de uma história de terror.
“Era uma vez
(Porque todas elas começam assim)
Uma Garça
Uma Garça feliz, ingénua e inconsequente
Mas meu amor ela não queria ser diferente
Porque é dessa forma que se sente feliz e leve o suficiente
Só assim se pode voar – e diz que a isso se chama ser resiliente.
A Garça amava, e que mal tem diz-me tu em amar?
Nenhum meu amor,
Amava os rios as pontes as serras as pedras os montes
Amava o belo o triste e o feio – porque tudo faz parte da vida.
Que mal tem amar?
E tudo o que os campos têm é de Deus e Ele colocou à disposição do homem
E tudo o que os campos têm é da natureza e homem faz parte dela e assim tem de ser!
E que mal tem amar?
Feio mau é odiar, matar, roubar… e procurar o que não nos pertence.
Mas o coração dos Homens é livre e não se pode enjaular…
E havia um Leão
Passeando sob o céu azul
Que a Garça viu com graça
Pele e pêlo cor de mel
(ah mas a Garça não se aproximava porque sentia o fel!)
Mas um dia… e outro dia explico melhor meu amor
Hoje não… é doloroso
É penoso recordar
Deixa-me partilhar…
Sim, porque não partilhamos
Partilhemos o sol, a seara dos campos e os rios de mel do Éden?
Partilhemos as maravilhas da natureza partilhemos o ar e a beleza
E tudo que nos é dado…
Não, mas isso não.
Ó Povo mal pensado!
Um dia o Leão procurou a garça que lhe fez graça
E afinal
Destas coisas tem o reino animal
Havia tanto da mesma flor
No peito de cada um igual!
Ó minha bela dolorosa
 que parte em ti é a de escarlate cor
a nobre flor a…
E a hiena, esse vil animal…
Foi criatura odiosa a que a possuiu em mal
E era lume, desconfiança e zelos.
E a Lua estava plácida e cheia
Generosa de amor
Mas a pobre criatura, possuída pela tortura
Cirandava de volta porque a ela pertencia
a carcaça dos amantes
era vil aleivosia?
Eram ternos e fraternos
Os olhares penetrantes
Havia gestos paternos… eram castos os assim ditos antes.
Achas isto vil aleivosia?

E venha daí o julgamento
Santo oficio e prejuízo do sacramento
E venha o juiz, o papa o douto e o jumento
Afinal de quem eram as estrelas e a quem elas pertencia?
Achas que não sei como nos sentimos… como perdemos a respiração na incerteza
Na negrume imensa, escuridão…
Não vês que prender sufocar
Ter por força,
É matar o coração?!
“E eu voo” – disse a Garça.
Afinal, qualquer um de vós apenas quer a minha carcaça!
E eu voo, para não cair nessa lama
E ficaram a Hiena e o Leão
Quem conhece a natureza sabe como eles são.
E eu voo – disse a Garça.
Leva-me daqui, quero voar qual Fénix.
Leva-me daqui meu amor
Leva-me daqui meu anjo de luz forte e poderoso
Socorre-me como tantas outras vezes me socorreste
Leva-me daqui em segredo
Olha o que fizeram ao jardim
Olha o que os animais fizeram ao arvoredo!
E eu limpo o meu alpendre
E eu limpo o nosso alpendre
Mas eu quero ficar aqui.
E venha daí o julgamento
Santo oficio e prejuízo do sacramento
E venha o juiz, o papa o douto e o jumento
Tenham mas é juízo!
Lúcia Cunha

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Rezo um poema E limpo a alma



Rezo um poema
E limpo a alma
Rezo um poema
Invoco os deuses
E dentro de mim renasce
Pássaro de luz.
Dorme hoje meu ser amado de mim
Dorme descansa.
Lança a tua lança anjo criança.
Agarrada a um corpo nu e limpo
Tu, eu.
Não será grande este corpo todo que é cosmos
Possuo o pó das estrelas a luz das coisas belas.
Oiro… seios de oiro.
Rochedos libidinosos
Grutas húmidas paredes suaves
Há tanta frescura nestes vales e nestes musgos húmidos e quentes
Há tantas sementes latentes
Cada uma prestes a germinar
As radiculas penetram a terra húmida
Agarram-na por dentro intumescida…
Há tantos poetas no meu leito
Há tantas pétalas por onde me deito.
Descansa…
Lança a tua lança meu anjo criança
Meu cravo entristecido
Meu roble orvalhado
Um fim merecido.


Lúcia