Entrou aqui um vendaval
Levantou os cortinados,
Manchou os canapés estofados,
Espalhou a lama nos meus lençóis.
Sai daqui,
Sai daqui criatura necrófaga, que me segues sedenta de
sangue
Acaso te importuno eu na tua guarita?
Com que direito tornaste este altar sacro putrefacto?
Isso, enjaula
Enjaula-nos
E somos todos apenas desgraçados
Regozijo dos demais
Que se riem com os nossos ais
Sim, de todos nós, não vês? Ou que crês
Alguém te acode a ti?
Alguém me acode a mim?
Alguém acode a ele?
Pára! Basta!
Deixem-me respirar!
Vou fugir vou voar
E deixo o leão lastimado e a hiena a rondar
Eu sou garça e vou voar
Levo a minha prol
Levo o meu amor o meu farol.
Deixo-vos a chafurdar na vossa dor.
Insultuoso? Achas realmente que é insultuosa a alegoria?
Insultuosa é a hipocrisia!
Insultuoso é não ser capaz de respirar
Insultuoso é não deixar partir não deixar crescer não deixar...
...voar.
...voar.
Prender por prender
Por ego, ego mesquinho…
Ai que desatino!
Pára de chafurdar e de enlamear com pérfida lama
Ama! Ama! Ama tu!
Ama-te!
Já pensaste em mim? Já pensaste?
Já te puseste no meu lugar
Anda, vem ver,
Vem espreitar vem ler
Vem entender como amo até a ti,
Como me compadeço
Como acho uma lástima
É lastimoso
É horroroso vivermos assim!
Sim, sou arrogante, pedante talvez
não tenho o direito…
até podes ter razão, desta vez!
Mas eu vejo com o coração não passo de uma pobre rapariga
tola… não te quero mal.
Não o faças a mim, nem a ti,
Nem a ele.
Sabes… vê como se ri
O burgo ri
O burgo quer circo e feras
E sangue e lodo
Ai como é cruel o povo.
Entende por favor.
Sabes qual é o maior amor?
Aquele que eu preciso ter
E por isso voo para me erguer
Sozinha, agora e outra e outra vez… já reparaste como as
asas me devem doer?
Já pensaste no motivo para tudo isto acontecer?
Anda, voa, até tu podes voar
E se calhar a mim vai-me doer…
Mas eu só queria
A sério, honestamente, só queria um pouco de paz, de
harmonia,
Acreditas? Só queria
Que inguém vivesse em agonia
Eu sei,
Não dá para compreender
Mas acredita é a melhor maneira de sobreviver
Voa, voa, qualquer um pode aprender!
Já imaginaste que talvez
Não fosse tão forte e ameaçadora a ligação
Se houvesse mais irmandade e menos solidão…
Sei lá…
Pobre de mim, dar-te este beijo de boa noite a ti.
Oxalá tu lesses bem
Oxalá entendesses.
Estou certa que não está a entender
Talvez te possa doer, e até estejas a fazer uma enorme
confusão…
Por isso vou contar a história da garça a ti meu verdadeiro amor,
Flor pequenina e bonina
Imaculável, de forma que não entendendo tu possa ela
compreender.
Como se fosse uma nana de boa noite.
Em vez de uma história de terror.
“Era uma vez
(Porque todas elas começam assim)
Uma Garça
Uma Garça feliz, ingénua e inconsequente
Mas meu amor ela não queria ser diferente
Porque é dessa forma que se sente feliz e leve o suficiente
Só assim se pode voar – e diz que a isso se chama ser
resiliente.
A Garça amava, e que mal tem diz-me tu em amar?
Nenhum meu amor,
Amava os rios as pontes as serras as pedras os montes
Amava o belo o triste e o feio – porque tudo faz parte da vida.
Que mal tem amar?
E tudo o que os campos têm é de Deus e Ele colocou à
disposição do homem
E tudo o que os campos têm é da natureza e homem faz parte
dela e assim tem de ser!
E que mal tem amar?
Feio mau é odiar, matar, roubar… e procurar o que não nos
pertence.
Mas o coração dos Homens é livre e não se pode enjaular…
E havia um Leão
Passeando sob o céu azul
Que a Garça viu com graça
Pele e pêlo cor de mel
(ah mas a Garça não se aproximava porque sentia o fel!)
Mas um dia… e outro dia explico melhor meu amor
Hoje não… é doloroso
É penoso recordar
Deixa-me partilhar…
Sim, porque não partilhamos
Partilhemos o sol, a seara dos campos e os rios de mel do Éden?
Partilhemos as maravilhas da natureza partilhemos o ar e a
beleza
E tudo que nos é dado…
Não, mas isso não.
Ó Povo mal pensado!
Um dia o Leão procurou a garça que lhe fez graça
E afinal
Destas coisas tem o reino animal
Havia tanto da mesma flor
No peito de cada um igual!
Ó minha bela dolorosa
que parte em ti é a
de escarlate cor
a nobre flor a…
E a hiena, esse vil animal…
Foi criatura odiosa a que a possuiu em mal
E era lume, desconfiança e zelos.
E a Lua estava plácida e cheia
Generosa de amor
Mas a pobre criatura, possuída pela tortura
Cirandava de volta porque a ela pertencia
a carcaça dos amantes
era vil aleivosia?
Eram ternos e fraternos
Os olhares penetrantes
Havia gestos paternos… eram castos os assim ditos antes.
Achas isto vil aleivosia?
E venha daí o julgamento
Santo oficio e prejuízo do sacramento
E venha o juiz, o papa o douto e o jumento
Afinal de quem eram as estrelas e a quem elas pertencia?
Achas que não sei como nos sentimos… como perdemos a
respiração na incerteza
Na negrume imensa, escuridão…
Não vês que prender sufocar
Ter por força,
É matar o coração?!
“E eu voo” – disse a Garça.
Afinal, qualquer um de vós apenas quer a minha carcaça!
E eu voo, para não cair nessa lama
E ficaram a Hiena e o Leão
Quem conhece a natureza sabe como eles são.
E eu voo – disse a Garça.
Leva-me daqui, quero voar qual Fénix.
Leva-me daqui meu amor
Leva-me daqui meu anjo de luz forte e poderoso
Socorre-me como tantas outras vezes me socorreste
Leva-me daqui em segredo
Olha o que fizeram ao jardim
Olha o que os animais fizeram ao arvoredo!
E eu limpo o meu alpendre
E eu limpo o nosso alpendre
Mas eu quero ficar aqui.
E venha daí o julgamento
Santo oficio e prejuízo do sacramento
E venha o juiz, o papa o douto e o jumento
Tenham mas é juízo!
Lúcia Cunha
prosa complexa e dolorida de uma pessoa bondosa
ResponderEliminarGrata pelo comentário.
ResponderEliminarSim, realmente a dor é um factor presente, mas se reparar há sempre um esforço para "resolver", "para alimentar a esperança"... se não para mim não faria de todo sentido publicar. Na partilha do que escrevo procuro dar algo, sendo que essa algo seja positivo.