Soube, desde
sempre, que a sociedade pode ser cruel. Que tudo está organizado, na sociedade,
de forma que a vida de uns seja como meras peças de jogo nas mãos de outros. Às
vezes, dou comigo a tentar destrinçar essa trama e a encaixar as peças, a estudar
as tácticas - qual treinador de futebol que observa os jogos dos adversários. E sem
querer vou deduzindo, sem grande esforço vou entendendo e contorcendo-me no meu
âmago.
Somos gado, rebanhos de pastores que negoceiam entre eles. Não é muito
difícil de chegar lá e descobrir quem é que nos dá de comer… só me incomoda
a estupidez dos pastores… eu sou uma espécie de ovelha Choné.
Bem, mas ao que
queria chegar? Havia algo que eu não entendia, mas cheguei lá. Nunca repararam
que, salvo mesmo raras exceções, neste emaranhado de crueldade há sempre
solidariedade para os mais desfavorecidos? Nunca pensaram porque é que se
alimentam, ainda que de forma pouco dignificante as classes miseráveis? Nunca
refletiram sobre o móbil que leva o poder a alimentar a dependência e como está
tudo organizado a prevalecer na dependência? Então, vem-me á ideia um fragmento de um slogan publicitário e canto em voz alta para mim mesma: “imagina o
que era não dar uma bolacha aos pobrezinhos”.
Se realmente
se ajudassem as comunidades a organizarem-se para fazer frente aos problemas
elas iam adquirir tamanha autonomia, tamanha capacidade… e as competências que
se adquirem por necessidade prevalecem ao invés daquilo que é imposto… então
“imagina o que era se dessem uma bolacha ao povo!”
Parece-me que
nasci num momento de transe de algum desses pastores que acreditou que se o
gado fosse ao pasto sozinho e voltasse ao estábulo era mais rentável a produção
e menos dispendiosa. Por isso desde 79 até há relativamente meia dúzia de anos,
fui adquirindo a consciência de igualdade, de autonomia, participação,
cooperação. Fui alimentando a ideia de que se “eu quisesse podia”, aliás a
culpa de não poder não era bem do
mundo era mais de casa, mas isso “são outros Carnavais”. Foi isso que aprendi,
foi isso que fui ensinando ou demonstrando e é nisso que acredito.
Mas,
subitamente o pastor que amava o seu rebanho sentiu-se, inseguro com a
liberdade que deu às suas vacas, elas podiam fugir a qualquer momento, elas
podiam ir embora, podiam deixar de lhe pertencer. O que lhe garantia o seu
amor, a sua admiração? No fundo ele nunca tinha sido pastor por escolha das
vacas, fora-o sempre por uma certa imposição – as vacas não tinham outro
remédio se não serem vacas e obedecerem, demonstrarem admiração e afeição ao seu
pastor. Sentiu-se ferido e traído, pelo seu próprio medo de ser traído – pois as
vacas nunca o chegaram a trair realmente… Então, acordou do devaneio, foi
interiorizando que as vacas podiam fugir-lhe, que ele podia não estar à altura
delas, que havia biliões de outras coisas que elas podiam admirar, nomeadamente
a elas mesmas. As vacas podiam ser independentes, criar a sua própria cidade de
vacas sem pastores e sem banca.
Não lhes deu
se quer oportunidade de o questionarem a ele e à sua performance como pastor de
vacas e antes que elas se atrevessem…
Havia que
dominar as vacas, infringir-lhes maus tratos para elas entenderem à força que
não são mais que simples animais domésticos e que pertencem a um pastor. Não se
lhes podia dar alternativas à alimentação facultada pelo pastor, ao estábulo
subsidiado pelo pastor… tudo, tudo, tudinho dependia da ordem suprema do
pastor! Era preciso incutir nas vacas o medo: o medo é sempre uma arma
preciosa, ecológica e silenciosa, mas infalível. As vacas tinham que acreditar
que para lá das sebes havia perigos incalculáveis e acima de tudo havia que
destruir a crença das vacas nelas mesmas. Como? Simples, repetindo-lhes
incessantemente que elas eram: vacas!
O pastor
estava tão apavorado em perder as suas vacas que inclusive passou a
ensinar-lhes um hino, onde as vacas repetiam em postura firme: “tenho orgulho
em ser uma vaca…” etc. etc. mais que orgulho era uma resignação, uma
constatação, uma subordinação aceite como a naturalidade com que se aceita um
facto irrefutável de que a água é água.
Tudo isto me
faz pensar: Imagina o que seria se déssemos de
frosques ao pastor!
Lúcia Pereira da Cunha