quinta-feira, 10 de novembro de 2022

o lugar comum

 a noite sentou-se numa cadeira

e a lua ficou indignada.

sentas-te, adormeceste no sonho do sono

e concluíste que nada é do que foi.


todos os lugares vazios

e tu estás apenas num:

o lugar comum


sentaste-te na noite

à procura não sabias bem do quê

a solidão não adormece

e tudo o que vês deu-te vazio

"havias de ler um livro!"

talvez te desse fome


"e agora homem?"

ainda há forma de resolver esse problema aí do lado

estás sempre a tempo

enquanto houver tempo

e havia tanto lugar vazio 

e havias de te sentar  apenas num:

o lugar comum


e eu vejo-te agora porta a dentro

entro em ti e incomodo

sentes que te arranho

molesta como rododendro

mas não arranho nem sou funesta

acalento

de fora e adentro

como num mar que embarcas

onde não te perdes e te abraça


adormece

adormece a dor de que toda a multidão padece

ensurdece

e ouve só o coração

funciona

não foi preciso esforço

foi só doce elaborado esboço

improviso nascer

E, é só noite uma vez, antes do amanhecer.


A Lúcia 

 





quinta-feira, 3 de novembro de 2022

gps

 ela enganou-se e escreveu um destino

como se fosse uma gralha 

uma falha na coordenada

um desvio na direcção 


enganou-se no destino

e foi a vida que vagueou

foi dar-lhe ao coração 

andou em circulos

regressou à mesma estação 


o outono dói-me

e ainda não passei pelo inverno 

chora-me a terra seca, a minha alma.

aonde me anda a memória válida?

e aquela força estival?

tão natural que me era o verão.


esses rebentos verdes

as frágeis pastagens de outono

são melancólicas, doentias 

nunca fizeram mal 

mas, não eram o melhor conduto das minhas alegrias.

ai essa imensidão de dor

turpor e melancolias.

estou farta de ti senhor

senhor surdo das minhas noites

a quem digo palavras vãs

ah fazem-me falta as carnes sãs 

e os gritos e as tropelias 

perdi essa coisa-fé 

ah tão sentido o sentido do que se é 

dai-me só whisky, esse de sabor que não sabe

só para deixar de saber

e quando voltar a noite

que vejo sem luz em todos os dias

só precisarei de beber 

ah, já não vou lá com os paleativos 

contos retóricos... papagaios discursivos

perdi-me dessa coisa-fé

esse indicador de direcção 

desliguei há tanto tempo

para me concentrar no caminho 

e agora

só me resta arrancar de novo 

e continuar 

devagarinho.


(Com amor da V/ Lúcia)


domingo, 31 de julho de 2022

à espera de ser II

 

Perdeste os dias na espera

Como se a paciência fosse virtude

Perdeste os dias na obediência de bom soldado

Convencido que a coragem dos bravos se mede pela retidão

Certo que a retidão é um sentido único e numa só direção

Bebeste os dogmas em vez de beber da água das minhas palavras

Ó soldado corpo

Ó soldado carne

Ó solado gado

 

Despojaste-te de ti à merce de uma cantiga

Que te trazia tranquilidade e segurança

São tão previsíveis e confortáveis as paredes regras.

 

Aprendeste a recusar beber a liberdade do doce mamilo intempestivo da paz

Porque trazia cheiros diversos, cores de todas a notas

Numa idiossincrasia…

E é tão longe o infinito

E difícil decifrar teias ardilosas da vida

a mutabilidade do diverso, da evolução

Entrar nas entranhas da mudança

E encarar-se nas entranhas em mudança

Ah essa revolução de dentro contida

Com espasmos involuntários

Dolorosa precipitação de prazer,

Ah o vazio a desorientação.

Como é difícil seres parido de novo todos os dias

Dentro e fora da gruta húmida e deleitosa

Ah a solidão!


A Lúcia

à espera de ser I

 

Onde está a montanha e os seus rochedos

Quando vierem as águias e os medos

E os ratinhos amedrontados

Morrem os cisnes afogados

E os demais bichos e animais emplumados

Ah esse subtil desdém prenho de vaidade

 

A quantos versos estou das trompetes

A quantos aís estou do suspiro final

Em quantos bater de asas morrem as borboletas

 

Ainda me falta a primavera

 

E esperas pela manhã para ser

 

Quantas horas ainda demoras

Para sentires o que podes ter

 

Mergulho

No silêncio de uma tarde

Emersa

A água abafa o ruído

E por uma vez

Tudo poderia deixar de ser

Mergulho a alma na volúpia dos nossos corpos

Por um tempo indeterminado paro,

E fluo no interior do novelo quente de prazer

Dentro de mim

Há um universo

E eu não sou capaz de lhe dar lugar cá fora

Preciso da pastora de astros

Que me ensine a transumar a minha alma

Dentro de mim ainda há um mar que não mostrei

Há ainda tanto que tenho a aprender…

 

E quanto poderia valer ao mundo todo o mar que escondemos em nós?

E o esquadrão das águias vai cobrir os céus,

E cuspir fogo - sem que os bichos tenham intensão.

E eu, não fiz nada, e tinha um rio dentro de mim.


A Lúcia

 

asas no deserto

 Nasceste para voar

cuida das tuas asas

tu nasceste para fazer nuvens 

e pra trazer vento

sopra


oh meu amor sopra

leva para longe o mau momento


todas as dores apertam 

esmagam 

pequenez


transforma  pequenez pequena


senhor

onde me escutas agora?

há dias de deserto insuportáveis

tenho-te na beleza árida da solidão

é na tua incorporação carnal que te perdes em ausência


senhor

a onde me empurram as horas 

que fazem perder os dias 

presentes no olhar que trago


 A Lúcia